O Instituto Butantan vai desenvolver e testar um medicamento com base em anticorpos monoclonais contra o vírus Zika. O objetivo é usar uma linhagem celular para produzir anticorpos que serão usados para prevenir a infecção em grávidas, e que também podem ser utilizados por qualquer pessoa sob risco de contrair a doença. O anticorpo monoclonal (mAb) foi licenciado para o Instituto pela Universidade Rockefeller, dos Estados Unidos, onde pesquisadores liderados pelo médico imunologista Michel Nussenzweig descobriram o anticorpo humano capaz de neutralizar o vírus.
“O Butantan está trabalhando no desenvolvimento de anticorpos monoclonais em escala farmacêutica, o que permitirá começarmos os estudos clínicos”, afirma o diretor do Instituto, Esper Kallás. Os resultados promissores com estes anticorpos nos Estados Unidos, e a testagem dos anticorpos produzidos a partir de uma linhagem celular experimental na fábrica própria do Butantan, abriram o caminho para o licenciamento do mAb para a organização brasileira.
Entenda o que são anticorpos monoclonais
Nascido no Brasil, Michel Nussenzweig, que é professor da cátedra Zanvil A. Cohn e Ralph M. Steinman na Universidade Rockfeller e investigador do Howard Hughes Medical Institute, isolou vários anticorpos contra o Zika e selecionou dois que mostraram boa atividade neutralizante contra o vírus. A partir disso, os desenvolveu em escala para estudos laboratoriais e experimentos em modelos animais, demonstrando que eles tinham uma capacidade de neutralização considerável, inclusive nos testes in vivo.
A Universidade Rockfeller então licenciou a tecnologia do anticorpo da Zika, criada por Nussenzweig, ao Butantan – conforme os princípios do Instituto para a Pesquisa de Doenças Infecciosas Globais da Fundação Stavros Niarchos (SNF), o que inclui a facilitação de benefícios práticos para a saúde e a priorização do acesso, impacto e direcionamento para necessidades não atendidas em doenças infecciosas.
Para o Butantan, produzir e desenvolver o medicamento é uma forma de se preparar caso haja um novo surto de Zika no Brasil. Em 2015, o país declarou estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional devido ao aumento no número de casos da doença e de nascimentos de crianças com microcefalia – a grande preocupação quando a enfermidade afeta mulheres grávidas. Em 2015, foram registrados 51.806 casos prováveis de Zika; em 2016, foram 213.350. De acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), entre 2015 e 2017, período que durou a Emergência em Saúde Pública, 4.595 crianças nasceram no Brasil com microcefalia – para efeito de comparação, o número de casos da malformação congênita foi de 6.267 na década inteira, de 2010 a 2019.
“Temos que lembrar que uma epidemia de Zika como a que vivemos em 2015 e 2016 ocorre em surtos muito rápidos. Em 2015, por exemplo, em três meses algumas populações haviam sido completamente infectadas pelo vírus. Sabemos que um dia podemos ter que enfrentar este tipo de desafio de novo. A função de um instituto como o Butantan não é só resolver os problemas atuais, mas criar elementos para se preparar para problemas que eventualmente possam surgir no futuro”, afirma.
A recente epidemia de dengue, que extrapolou as fronteiras da América Latina, com mais de 6,5 milhões de casos prováveis e 6.297 óbitos em 2024, vem impulsionando as ações preventivas do Instituto contra doenças transmitidas por arbovírus – classificação que inclui também Zika e chikungunya. “Em 2024, vimos uma enorme epidemia de dengue que foi até o Chile e Argentina, já que as condições climáticas mudaram. Como temos uma vasta população que não contraiu Zika e não é imune ao vírus, podemos viver uma outra grande epidemia”, ressalta o diretor do Butantan.
Se os estudos clínicos a serem feitos pelo Butantan demonstrarem uma boa eficácia do anticorpo monoclonal na neutralização do vírus Zika em humanos, o foco futuro será testá-lo e oferecê-lo às gestantes que residem em áreas de surtos ou de epidemia para evitar que adoeçam e repassem o vírus ao bebê.
“O anticorpo monoclonal anti-Zika seria um medicamento preventivo, uma imunoterapia passiva onde a mulher receberia um anticorpo pronto. Seria uma das formas de proteger mulheres em idade reprodutiva, e principalmente as grávidas, de se infectarem pelo vírus durante a gestação”, afirma Esper Kallás.
O vírus Zika, assim como os vírus da dengue e chikungunya, é transmitido pela picada do Aedes aegypti. Na metade dos casos, as infecções são assintomáticas; na outra metade, podem apresentar sintomas como febre baixa, manchas avermelhadas na pele (exantema), dor de cabeça, conjuntivite, inchaço nas articulações e crescimento excessivo dos linfonodos, de acordo com o Ministério da Saúde.
Em 2015, durante a epidemia da doença no Brasil, pesquisadores identificaram a síndrome congênita do Zika vírus – quando a grávida infectada, sintomática ou assintomática, transmite o vírus para o feto durante a gestação, o que causa no bebê complicações neurológicas e anomalias congênitas irreversíveis. Pesquisas realizadas durante o surto de Zika no Brasil e na Polinésia Francesa também associaram o vírus à síndrome de Guillain-Barré (SGB).
“Há bolsões no Brasil que continuam suscetíveis ao Zika porque é um vírus transmitido com relativa facilidade onde há abundância do vetor transmissor. Com o clima mais quente, que acelera a reprodução dos mosquitos, os surtos podem ir para além do Norte e Nordeste”, esclarece Esper.
Solução brasileira
Publicada em 2020 na PNAS, revista científica da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a pesquisa da Universidade Rockfeller envolveu a administração profilática de dois anticorpos monoclonais anti-Zika em macacas rhesus prenhas, durante o primeiro e segundo trimestre de gestação.
Os dois anticorpos diminuíram, mas não eliminaram completamente, a viremia materna das macacas, desafiadas três vezes com o vírus. A transmissão vertical foi limitada, protegendo os fetos de danos neurológicos. Com isso, a pesquisa concluiu que a imunização passiva materna com dois anticorpos pode proteger os fetos primatas dos efeitos nocivos do Zika.
“Este projeto tem uma profunda relevância para o Brasil: é um vírus que causou um problema de saúde pública recente no Brasil, onde houve um entendimento muito grande em relação à doença, e tem participação de instituições brasileiras e dos Estados Unidos, com muitos dos principais pesquisadores sendo brasileiros”, aponta Esper Kallás. Os cientistas do Laboratório de Imunologia Molecular da Universidade Rockefeller, Michel Nussenzweig e Marina Caskey, que estudam o Zika, nasceram ambos no Brasil.
Linhagem aprimorada
Uma linhagem de células capaz de produzir o mesmo anticorpo monoclonal usado na pesquisa já havia sido desenvolvida no Laboratório de Biofármacos do Butantan pela transfecção celular com os genes sintetizados a partir das sequências recebidas da Rockefeller. A linhagem celular foi expandida em caráter experimental na fábrica de anticorpos monoclonais (PAM) do Centro Bioindustrial do Instituto Butantan, mas precisou passar por aprimoramentos antes dos testes com humanos.
“Os anticorpos monoclonais têm um tempo de vida médio de três semanas na circulação sanguínea, e o objetivo dessa modificação do anticorpo é para ele ter uma vida mais longa e proteger o feto durante o tempo de gestação, com uma única administração. Por isso, trabalhamos junto com Michel Nussenzweig para a geração dessa nova linhagem de células”, conta a diretora do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Imunobiológicos (CeRDI) e do Laboratório de Biofármacos do Butantan, Ana Maria Moro, responsável pelo desenvolvimento da linhagem celular experimental.
Na nova fase da pesquisa, o Instituto está aplicando técnicas de engenharia genética com o objetivo de aumentar o tempo de duração do anticorpo no organismo para a proteção durante a gravidez. “O ideal seria a aplicação do anticorpo apenas uma vez logo no início da gestação”, afirma Esper.
Estudos clínicos
Como a pesquisa está em estágio preliminar, testes clínicos ainda vão demorar a acontecer – eles só poderão ser iniciados quando o fármaco for produzido. E, levando em conta que medicamentos não costumam ser testados em gestantes, uma série de escalonamentos de dose e estudos de segurança deverão ser realizados. Após isso, o primeiro passo será aplicar o mAb em voluntários saudáveis, e depois, em adultos infectados, para avaliar se a administração traz propriedades que demonstrem a proteção contra o vírus.
Esper lembra que o método já está sendo adotado na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Os dados mostram que, em situação supercontrolada e com voluntários saudáveis, administrar o vírus Zika de forma subcutânea causou uma viremia transitória, permitindo estudar melhor este tipo de infecção.
“Sob este contexto que chamamos de infecções humanas controladas para estudos de pesquisa, poderíamos empregar o anticorpo para saber se ele vai proteger. Tendo sido feito e pronto, temos que demostrar que também é seguro em mulheres grávidas. Dando tudo certo, teríamos o pacote regulatório pronto para a submissão à Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]”, aponta Esper Kallás.
O anticorpo substitui a vacina?
O diretor do Butantan esclarece que o anticorpo monoclonal anti-zika não deve ser encarado como um substituto de uma possível vacina contra o vírus – outro projeto do Instituto Butantan. Ambas são formas complementares de prevenção de doenças infecciosas.
“O anticorpo monoclonal é indicado para complementar o efeito da vacina, já que nenhum imunizante confere proteção de 100% contra um patógeno. Em uma região onde mulheres estão suscetíveis a determinada doença e não tomaram a vacina, ou se algumas delas tomaram o imunizante há muito tempo e não se sabe ao certo se continuam protegidas, o mAb pode servir, complementando o efeito do imunizante”, conclui Esper Kallás.